quinta-feira, 28 de abril de 2011

Todas as águas dormem


Há uma hora certa,
no meio de noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...

Águas claras, barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas de folhagem.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos agonizantes...

Mas nem todos dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono...

(Guimarães Rosa)

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Carrego o peso da lua




Carrego o peso da lua,

Três paixões mal curadas,

Um saara de páginas,

Essa infinita madrugada.

Viver de noite

Me fez senhor do fogo.

A vocês, eu deixo o sono.


O sonho, não.

Esse, eu mesmo carrego.



(Paulo Leminski)

quinta-feira, 21 de abril de 2011

sexta-feira, 8 de abril de 2011




"(...) Ensine-o a ser gentil com os gentis e duro com os duros, ensine-o a nunca entrar no comboio simplesmente porque os outros também entraram. Ensine-o a ouvir a todos, mas, na hora da verdade, a decidir sozinho, ensine-o a rir quando está triste e explique-lhe que, por vezes, os homens também choram. Ensine-o a ignorar as multidões que reclamam sangue e a lutar só contra todos, se ele achar que tem razão. Trate-o bem, mas não o mime, pois só o teste do fogo faz o verdadeiro aço, deixe-o ter a coragem de ser impaciente e a paciência de ser corajoso. Transmita-lhe uma fé sublime no Criador e fé também em si, pois só assim poderá ter fé nos homens..."

(trecho de carta de Abraham Lincoln ao professor do seu filho, escrita em 1830)

quinta-feira, 7 de abril de 2011

Desintegração

Eu tenho o coração cheio de coisas para dizer... E a minha voz, se eu acaso falasse, teria a força de uma revelação. Meu espírito palpita ao ritmo desordenado e aflito de asas prisioneiras que se dilaceraram na arrancada impossível da libertação e da altura. Minhas mãos tremem ainda ao contato imaterial, sub-humano e fugitivo de qualquer coisa além e acima deste mundo... Adormeceu para sempre no fundo dos meus olhos a saudade de paisagens estranhas e longínquas, que nunca, nunca mais voltarão neste tempo e neste espaço. Doem meus olhos. Tremem, ansiosas, as minhas mãos. Meu espírito palpita! Tenho o coração cheio de coisas para dizer... Eu estou vivo, Senhor! mas, em verdade, é como se estivesse morto. (Abgar Renault)

domingo, 3 de abril de 2011

O que nós vemos das cousas


O que nós vemos das cousas são as cousas.

Porque veríamos nós uma cousa se houvesse outra?

Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos

Se ver e ouvir são ver e ouvir?

O essencial é saber ver,

Saber ver sem estar a pensar,

Saber ver quando se vê,

E nem pensar quando se vê

Nem ver quando se pensa.


Mas isso (triste de nós que trazemos a alma vestida!),

Isso exige um estudo profundo,

Uma aprendizagem de desaprender

E uma sequestração na liberdade daquele convento

De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas

E as flores as penitentes convictas de um só dia,


Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas

Nem as flores senão flores,

Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.


(lberto Caeiro, um dos heterônimos de Fernando Pessoa)