sexta-feira, 28 de maio de 2010

Eros e Psique




Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.

Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.

A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera,
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.

Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
Rompe o caminho fadado,
Ele dela é ignorado,
Ela para ele é ninguém.

Mas cada um cumpre o Destino
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.

E, se bem que seja obscuro
Tudo pela estrada fora,
E falso, ele vem seguro,
E vencendo estrada e muro,
Chega onde em sono ela mora,

E, inda tonto do que houvera,
À cabeça, em maresia,
Ergue a mão, e encontra hera,
E vê que ele mesmo era
A Princesa que dormia.


(Fernando Pessoa )

segunda-feira, 24 de maio de 2010

Trecho de "O Livro dos Prazeres"


"Deviam ser seis horas da manhã. O cão livre hesitava na praia, o cão negro. Por que é que um cão é tão livre? Porque ele é o mistério vivo que não se indaga. A mulher hesita porque vai entrar. Seu corpo se consola de sua própria exigüidade em relação à vastidão do mar porque é a exigüidade do corpo que o permite tornar-se quente e delimitado, e o que a tornava pobre e livre gente, com sua parte de liberdade de cão nas areias. Esse corpo entrará no ilimitado frio que sem raiva ruge no silêncio da madrugada. A mulher não está sabendo: mas está cumprindo uma coragem. Com a praia vazia nessa hora, ela não tem o exemplo de outros humanos que transformam a entrada no mar em simples jogo leviano de viver. Ela está sozinha. O mar salgado não é sozinho porque é salgado e grande, e isso é uma realização da Natureza. A sua coragem é a de, não se conhecendo, no entanto prosseguir, e agir sem se conhecer exige coragem. Vai entrando. A água salgadíssima é de um frio que lhe arrepia e agride em ritual as pernas. Mas uma alegria fatal — a alegria é uma fatalidade — já a tomou, embora nem lhe ocorra sorrir. Pelo contrário, está muito séria. O cheiro é de uma maresia tonteante que a desperta de seu mais adormecido sono secular. E agora está alerta, mesmo sem pensar, como um pescador está alerta sem pensar. A mulher é agora uma compacta e uma leve e uma aguda — e abre caminho na gelidez que, líquida, se opõe a ela, e no entanto a deixa entrar, como no amor em que a oposição pode ser um pedido secreto. O caminho lento aumenta sua coragem secreta — e de repente ela se deixa cobrir pela primeira onda! O sal, o iodo, tudo líquido deixam-na por uns instantes cega, toda escorrendo — espantada de pé, fertilizada. Agora que o corpo todo está molhado e dos cabelos escorre água, agora o frio se transforma em frígido. Avançando, ela abre as águas do mundo pelo meio. Já não precisa de coragem, agora já é antiga no ritual retomado que abandonara há milênios. Abaixa a cabeça dentro do brilho do mar, e retira uma cabeleira que sai escorrendo toda sobre os olhos salgados que ardem. Brinca com a mão na água, pausada, os cabelos ao sol quase imediatamente já estão se endurecendo de sal. Com a concha das mãos e com a altivez dos que nunca darão explicação nem a eles mesmos: com a concha das mãos cheias de água, bebe-a em goles grandes, bons para a saúde de um corpo. E era isso o que estava lhe faltando: o mar por dentro como o líquido espesso de um homem.
Agora ela está toda igual a si mesma. A garganta alimentada se constringe pelo sal, os olhos avermelham-se pelo sal que seca, as ondas lhe batem e voltam, lhe batem e voltam pois ela é um anteparo compacto. Mergulha de novo, de novo bebe mais água, agora sem sofreguidão pois já conhece e já tem um ritmo de vida no mar. Ela é a amante que não teme pois que sabe que terá tudo de novo. O sol se abre mais e arrepia-a ao secá-la, ela mergulha de novo: está cada vez menos sôfrega e menos aguda. Agora sabe o que quer: quer ficar de pé parada no mar. Assim fica, pois. Como contra os costados de um navio, a água bate, volta, bate, volta. A mulher não recebe transmissões nem transmite. Não precisa de comunicação. Depois caminha dentro da água de volta à praia, e as ondas empurram-na suavemente ajudando-a a sair. Não está caminhando sobre as águas — ah nunca faria isso depois que há milênios já haviam andado sobre as águas — mas ninguém lhe tira isso: caminhar dentro das águas. Às vezes o mar lhe opõe resistência à sua saída puxando-a com força para trás, mas então a proa da mulher avança um pouco mais dura e áspera. E agora pisa na areia. Sabe que está brilhando de água, e sal e sol. Mesmo que o esqueça, nunca poderá perder tudo isso. De algum modo obscuro seus cabelos escorridos são de náufrago. Porque sabe — sabe que fez um perigo. Um perigo tão antigo quanto o ser humano. "
(Clarice Lispector)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Velas





Velas Içadas
(Ivan Lins / Vitor Martins)

Seu coração é um barco de velas içadas
Longe dos mares, do tempo, das loucas marés
Seu coração é um barco de velas içadas
Sem nevoeiros, tormentas, sequer um revés

Seu coração é um barco jamais navegado
Nunca mostrou-se por dentro, abrindo os porões
Seu coração é um barco que vive ancorado
Nunca arriscou-se ao vento, às grandes paixões

Nunca soltou as amarras
Nunca ficou à deriva
Nunca sofreu um naufrágio
Nunca cruzou com piratas e aventureiros
Nunca cumpriu o destino das embarcações

Brasa


Surgiu como um clarão
Um raio me cortando a escuridão
E veio me puxando pela mão
Por onde não imaginei seguir
Me fez sentir tão bem, como ninguém
E eu fui me enganando sem sentir
E fui abrindo portas sem sair
Sonhando às cegas, sem dormir
Não sei quem é você

O amor em seu carvão
Foi me queimando em brasa no colchão
E me partiu em tantas pelo chão
Me colocou diante de um leão
O amor me consumiu, depois sumiu
E eu até perguntei, mas ninguém viu
E fui fechando o rosto sem sentir
E mesmo atenta, sem me distrair
Não sei quem é você
No espelho da ilusão
Se retocou pra outra traição
Tentou abrir as flores do perdão
Mas bati minha raiva no portão
E não mais me procure sem razão
Me deixe aqui e solta a minha mão
E fui fechando o tempo, sem chover
Fui fechando os meus olhos, pra esquecer
Quem é você?
(Carvão - Ana Carolina)

Loucuras



..."Mas o casamento é sagrado, vovó!"
Avó tremeu em seu coração de mulher nascida ainda no grande século galante.
"É o amor é sagrado" ela disse. "Escuta filhinha,esta velha que já viu três gerações e que conhece bem, mas muito bem, o assunto quando se trata de homens e mulheres. O casamento e o amor nada têm a ver juntos. Casa-se para formar uma família, e formam-se as famílias para constitutir a sociedade. A sociedade não pode passar sem o casamento. Se a sociedade é uma cadeia,cada família é um elo. Para soldar esses elos procuram-se sempre materiais parecidos. Quando se casa, é preciso juntar conveniências,combinar fortunas,unir as raças semelhantes, trabalhar pelo interesse comum que é a riqueza dos filhos. Não se casa mais do que uma vez, filhinha, porque o mundo assim exige, mas pode-se amar vinte vezes durante toda a vida, porque a natureza nos fez dessa maneira. O casamento é uma lei, veja bem, e o amor é um instinto que nos empurra ora à direita, ora à esquerda. Fizeram leis que combatem nossos instintos, era preciso; mas os instintos sempre são os mais fortes, e a gente não deveria resistir muito a eles, pois vêm de Deus, ao passo que as leis vêm apenas dos homens."

....

..." Pois eu lhe digo que o casamento é uma coisa necessária para que a sociedade exista, mas que ele não é da natureza de nossa raça, você me entende? Na vida há somente uma coisa boa, o amor.E como vocês compreendem mal o amor,como vocês estragam-no,fazem dele uma coisa solene como um sacramento ou algo que se compra,como um vestido."

A jovem, com lágrimas nos olhos, pedia aos céus uma grande paixão, uma única paixão eterna, conforme os sonhos dos poetas modernos, enquanto a avó, beijando-lhe a testa ainda impregnada daquela sedutora e sã razão com a qual os filósofos galantes polvilhavam o século XVIII, murmurava: "Cuidado, minha pobre filhinha; se você acredita em loucuras desse tipo,você vai ser bem infeliz."

(Conto "Outrora" de Guy Maupassant)

quarta-feira, 19 de maio de 2010

Assimetrico


ESSÊNCIA

Quando você desaparece
Todos os fantasmas somem.
Ficam apenas as suas sutilezas
Soltas no ar aqui e ali,
A revolver cinzas de incandescências passadas.

Ficam suas pegadas pregadas, postadas
Nos gritos calados dos versos
De um poema assimétrico, amorfo, polifônico,
Desmedido e sem medida,
Sem métrica.

Só sobram os versos brancos
Sem ritmo, sem rima, sem graça.
Só sobram versos em branco
Nas gavetas da memória.

Preto e branco



"Um fim de mar colore os horizontes."

(Manoel de Barros)

terça-feira, 18 de maio de 2010

Preste atenção!




NÃO DEIXE O AMOR PASSAR


Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida.
Se os olhares se cruzarem e, neste momento,houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu.
Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d’água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês.
Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente: O Amor.

Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do
dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O AMOR.

(Carlos Drummond de Andrade)





segunda-feira, 17 de maio de 2010

Gato



Visita inesperada e curiosa.
Senti um olhar a me observar na tarde de sábado. Apesar do dia chuvoso ficou a me olhar deitada na cama com o computador no colo.
E esse seu olhar dava um sono...
Apesar da chuva, ficou ali.
Estava protegido.
Mas a vontade era te trazer pra dentro e coloca-lo do meu lado.
Pelo menos não iria sentir frio...
Gato curioso!
Mas espero pela sua volta...
Será que voltará?
Saudades.

Azul


All Star
Nando Reis

Estranho seria se eu não me apaixonasse por você
O sal viria doce para os novos lábios
Colombo procurou as índias mas a terra avistou em você
O som que eu ouço são as gírias do seu vocabulário

Estranho é gostar tanto do seu all star azul
Estranho é pensar que o bairro das laranjeiras
Satisfeito sorri quando chego ali e entro no elevador
Aperto o 12 que é o seu andar não vejo a hora de te reencontrar
E continuar aquela conversa
Que não terminamos ontem ficou pra hoje

Estranho mas já me sinto como um velho amigo seu
Seu all star azul combina com o meu preto de cano alto
Se o homem já pisou na lua, como eu ainda não tenho seu endereço
O tom que eu canto as minhas músicas para a tua voz parece exato

Estranho é gostar tanto do seu all star azul
Estranho é pensar que o bairro das laranjeiras
Satisfeito sorri quando chego ali e entro no elevador
Aperto o 12 que é o seu andar não vejo a hora de te reencontrar
E continuar aquela conversa
Que não terminamos ontem ficou pra laranjeiras
Satisfeito sorri quando chego ali e entro no elevador
Aperto o 12 que é o seu andar não vejo a hora de te reencontrar
E continuar aquela conversa
Que não terminamos ontem, ficou pra hoje

quinta-feira, 13 de maio de 2010

A espera do "Pavão Misterioso"



"Pavão Misterioso"
(José Camelo de Melo Rezende)

Eu vou contar uma história
De um pavão misterioso
Que levantou vôo na Grécia
Com um rapaz corajoso
Raptando uma condessa
Filha de um conde orgulhoso.

Residia na Turquia
Um viúvo capitalista
Pai de dois filhos solteiros
O mais velho João Batista
Então o filho mais novo
Se chamava Evangelista.

O velho turco era dono
Duma fábrica de tecidos
Com largas propriedades
Dinheiro e bens possuídos
Deu de herança a seus filhos
Porque eram bem unidos.

Depois que o velho morreu
Fizeram combinação
Porque o tal João Batista
Concordou com o seu irmão
E foram negociar
Na mais perfeita união.

Movido a motor elétrico
Depósito de gasolina
Com locomoção macia
Que não fazia buzina
A obra mais importante
Que fez em sua oficina.

Tinha cauda como leque
As asas como pavão
Pescoço, cabeça e bico
Lavanca, chave e botão
Voava igualmente ao vento
Para qualquer direção.

Quando Edmundo findou
Disse a Evangelista:
— Sua obra está perfeita
ficou com bonita vista
o senhor tem que saber
que Edmundo é artista.

— Eu fiz o aeroplano
da forma de um pavão
que arma e se desarma
comprimindo em um botão
e carrega doze arroba
três léguas acima do chão.

Foram experimentar
Se tinha jeito o pavão
Abriram a lavanca e chave
Encarcaram num botão
O monstro girou suspenso
Maneiro como balão.

O pavão de asas abertas
Partiu com velocidade
Coroando todo o espaço
Muito acima da cidade
Como era meia noite
Voaram mesmo à vontade.

Então disse o engenheiro:
— Já provei minha invenção
fizemos a experiência
tome conta do pavão
agora o senhor me paga
sem promover discussão.

Perguntou Evangelista:
— Quanto custa o seu invento?
— Dê me cem contos de réis
acha caro o pagamento
o rapaz lhe respondeu:
Acho pouco dou duzentos.

Edmundo ainda deu-lhe
Mais uma serra azougada
Que serrava caibro e ripa
E não fazia zuada
Tinha os dentes igual navalha
De lâmina bem afiada.

Então disse o jovem turco:
— Muito obrigado fiquei
do pavão e dos presentes
para lutar me armei
amanhã a meia-noite
com Creuza conversarei.

À meia-noite o pavão
Do muro se levantou
Com as lâmpadas apagadas
Como uma flecha voou
Bem no sobrado do conde
Na cumeeira pousou.

Evangelista em silêncio
Cinco telhas arredou
Um buraco de dois palmos
Caibros e ripas serrou
E pendurado numa corda
Por ela escorregou.

Chegou no quarto de Creuza
Onde a donzela dormia
Debaixo do cortinado
Feito de seda amarela
E ele para acordá-la
Pôs a mão na testa dela.

A donzela estremeceu
Acordou no mesmo instante
E viu um rapaz estranho
De rosto muito elegante
Que sorria para ela
Com um olhar fascinante.

Então Creuza deu um grito:
— Papai um desconhecido
entrou aqui no meu quarto
sujeito muito atrevido
venha depressa papai
pode ser algum bandido.

O rapaz lhe disse: — Moça
Entre nós não há perigo
Estou pronto a defendê-la
Como um verdadeiro amigo
Venho é saber da senhora
Se quer casar-se comigo.

De um lenço enigmático
Que quando Creuza gritava
Chamando o pai dela
Então o moço passava
Ele no nariz da moça
Com isso ela desmaiava.

O jovem puxou o lenço
Ao nariz da moça encostou
Deu uma vertigem na moça
De repente desmaiou
E ele subiu na corda
Chegando em cima tirou.

Ajeitou os caibros e ripas
E consertou o telhado
E montando em seu pavão
Voou bastante vexado
Foi esconder o aparelho
Aonde foi fabricado.

O conde acordou aflito
Quando ouviu essa zuada
Entrou no quarto da filha
Desembainhou a espada
Encontrou-a sem sentido
Dez minutos desmaiada.

Percorreu todos os cantos
Com a espada na mão
Berrando e soltando pragas
Colérico como um leão
Dizendo: — Aonde encontrá-lo
Eu mato esse ladrão.

Creuza disse: — Meu pai
Pois eu vi neste momento
Um jovem rico e elegante
Me falando em casamento
Não vi quando ele encantou-se
Porque me deu um passamento.

Disse o conde: — Nesse caso
Tu já estás a sonhar
Moça de dezoito anos
Já pensando em se casar
Se aparecer casamento
Eu saberei desmanchar.

Evangelista voltou
Às duas da madrugada
Assentou seu pavão
Sem que fizesse zuada
Desceu pela mesma trilha
Na corda dependurada.

E Creuza estava deitada
Dormindo o sono inocente
Seus cabelos como um véu
Que enfeitava puramente
Como um anjo de terreal
Que tem lábios sorridentes.

O rapaz muito sutil
Foi pegando na mão dela
Então a moça assustou-se
Ele garantiu a ela
Que não eram malfazejos:
— Não tenha medo donzela.

A moça interrogou-o
Disse: — Quem é o senhor
Diz ele: — Sou estrangeiro
Lhe consagrei grande amor
Se não fores minha esposa
A vida não tem valor.

Mas Creuza achou impossível
O moço entrar no sobrado
Então perguntou a ele
De que jeito tinha entrado
E disse: — Vai me dizendo
Se és vivo ou encantado.

Como eu lhe tenho amizade
Me arrisco fora de hora
Moça não me negue o sim
A quem tanto lhe adora!
Creuza aí gritou: — Papai
Venha ver o homem agora.

Ele passou-lhe o lenço
Ela caiu sem sentido
Então subiu na corda
Por onde tinha descido
Chegou em cima e disse:
— O conde será vencido.

Ouviu-se tocar a corneta
E o brado da sentinela
O conde se dirigiu
Para o quarto da donzela
Viu a filha desmaiada
Não pode falar com ela.

Até que a moça tornou
Disse o conde: — É um caso sério
Sou um fidalgo tão rico
Atentado em meu critério
Mas nós vamos descobrir
O autor do mistério.

— Minha filha, eu já pensei
em um plano bem sagaz
passa essa banha amarela
na cabeça desse audaz
só assim descobriremos
esse anjo ou satanás.

— Só sendo uma visão
que entra neste sobrado
só chega à meia-noite
entra e sai sem ser notado
se é gente desse mundo
usa feitiço encantado.

Evangelista também
Desarmou seu pavão
A cauda, a capota, o bico
Diminuiu a armação
Escondeu o seu motor
Em um pequeno caixão.

Depois de sessenta dias
Alta noite em nevoeiro
Evangelista chegou
No seu pavão bem maneiro
Desceu no quarto da moça
A seu modo traiçoeiro.

Já era a terceira vez
Que Evangelista entrava
No quarto que a condessa
À noite se agasalhava
Pela força do amor
O rapaz se arriscava.

Com um pouco a moça acordou
Foi logo dizendo assim:
— Tu tens dito que me amas
com um bem-querer sem fim
se me amas com respeito
te senta juntos de mim.

Evangelista sentou-se
Pôs-se a conversar com ela
Trocando o riso esperava
A resposta da donzela
Ela pôs-lhe a mão na testa
Passou a banha amarela.

Depois Creuza levantou-se
Com vontade de gritar
O rapaz tocou-lhe o lenço
Sentiu ela desmaiar
Deixou-a com uma síncope
Tratou de se retirar.

E logo Evangelista
Voando da cumeeira
Foi esconder seu pavão
Nas folhas de uma palmeira
Disse: — Na quarta viagem
Levo essa estrangeira.

Creuza então passou o resto
Da noite mal sossegada
Acordou pela manhã
Meditava e cismada
Se o pai não perguntasse
Ela não dizia nada.

Disse o conde: — Minha filha
Parece que estás doente?
Sofreste algum acesso
Porque teu olhar não mente
O tal rapaz encantado
Te apareceu certamente.

E Creuza disse: — Papai
Eu cumpri o seu mandado
O rapaz apareceu-me
Mas achei-o delicado
Passei-lhe a banha amarela
E ele saiu marcado.

O conde disse aos soldados
Que a cidade patrulhassem
Tomassem os chapéus de
Quem nas ruas encontrassem
Um de cabelo amarelo
Ou rico ou pobre pegassem.

Evangelista trajou-se
Com roupa de alugado
Encontrou-se com a patrulha
O seu chapéu foi tirado
Viram o cabelo amarelo
Gritaram: — Esteja intimado!

Os soldados lhe disseram:
— Cidadão não estremeça
está preso a ordem do conde
e é bom que não se cresça
vai a presença do conde
se é homem não esmoreça.

— Você hoje vai provar
por sua vida responde
como é que tem falado
com a filha do nosso conde
quando ela lhe procura
onde é que se esconde.

Evangelista respondeu:
— Também me faça um favor
enquanto vou me vestir
minha roupa superior
na classe de homem rico
ninguém pisa meu valor.

Disseram: — Pode mudar
Sua roupa de nobreza
A moça bem que dizia
Que o rapaz tinha riqueza
Vamos ganhar umas luvas
E o conde uma surpresa.

Seguiu logo Evangelista
Conversando com o guarda
Até que se aproximaram
Duma palmeira copada
Então disse Evangelista:
— Minha roupa está trepada.

E os soldados olharam
Em cima tinha um caixão
Mandaram ele subir
E ficaram de prontidão
Pegaram a conversar
Prestando pouca atenção.

Evangelista subiu
Pôs um dedo no botão
Seu monstro de alumínio
Ergueu logo a armação
Dali foi se levantando
Seguiu voando o pavão.

E os soldados gritaram:
— Amigo, o senhor se desça
deixe de tanta demora
é bom que não aborreça
senão com pouco uma bala
visita sua cabeça.

Então mandaram subir
Um soldado de coragem
Disseram: — Pegue na perna
Arraste com a folhagem
Está passando na hora
De voltarmos da viagem.

Quando o soldado subiu
Gritou: — Perdemos a ação
Fugiu o moço voando
De longe vejo um pavão
Zombou de nossa patrulha
Aquele moço é o cão.

Voltaram e disseram ao conde
Que o rapaz tinham encontrado
Mas no olho de uma palmeira
O moço tinha voado
Disso o conde: — Pois é o cão
Que com Creuza tem falado.

Creuza sabendo da história
Chorava de arrependida
Por ter marcado o rapaz
Com banha desconhecida
Disse: — Nunca mais terei
Sossego na minha vida.

Disse Creuza: — Ora papai
Me prive da liberdade
Não consente que eu goze
A distração da cidade
Vivo como criminosa
Sem gozar a mocidade.

— Aqui não tenho direito
de falar com um criado
um rapaz para me ver
precisa ser encantado
mas talvez ainda eu fuja
deste maldito sobrado.

— O rapaz que me amou
só queria vê-lo agora
para cair nos seus pés
como uma infeliz que chora
embora que eu depois
morresse na mesma hora.

— Eu sei que para ele
não mereço confiança
quando ele vinha aqui
ainda eu tinha esperança
de sair desta prisão
onde estou desde de criança.

Às quatro da madrugada
Evangelista desceu
Creuza estava acordada
Nunca mais adormeceu
A moça estava chorando
O rapaz lhe apareceu.

O jovem cumprimentou-a
Deu-lhe um aperto de mão
A condessa ajoelhou-se
Para pedir-lhe perdão
Dizendo: — Meu pai mandou
Eu fazer-te uma traição.

O rapaz disse: — Menina
A mim não fizeste mal
Toda a moça é inocente
Tem seu papel virginal
Cerimônia de donzela
É uma coisa natural.

— Todo o seu sonho dourado
é fazer-te minha senhora
se quiseres casar comigo
te arrumas e vamos embora
senão o dia amanhece
e se perde a nossa hora.

— Se o senhor é homem sério
e comigo quer casar
pois tome conta de mim
aqui não quero ficar
se eu falar em casamento
meu pai manda me matar.

— Que importa que ele mande
tropas e navios pelos mares
minha viagem é aérea
meu cavalo anda nos ares
nós vamos sair daqui
casar em outros lugares.

Creuza estava empacotando
O vestido mais elegante
O conde entrou no quarto
E dando um berro vibrante
Gritando: — Filha maldita
Vais morrer com o seu amante.

O conde rangendo os dentes
Avançou com passo extenso
Deu um pontapé na filha
Dizendo: — Eu sou quem venço
Logo no nariz do conde
O rapaz passou o lenço.

Ouviu-se o baque do conde
Porque rolou desmaiado
A última cena do lenço
Deixou-o magnetizado
Disse o moço: -Tem dez minutos
Para sairmos do sobrado.

Creuza disse: — Eu estou pronta
Já podemos ir embora
E subiram pela corda
Até que sairam fora
Se aproximava a alvorada
Pela cortina da aurora.

Com pouco o conde acordou
Viu a corda pendurada
Na coberta do sobrado
Distinguiu uma zuada
E as lâmpadas do aparelho
Mostrando luz variada.

E a gaita do pavão
Tocando uma rouca voz
O monstro de olho de fogo
Projetando os seus faróis
O conde mandando pragas
Disse a moça: — É contra nós.

Os soldados da patrulha
Estavam de prontidão
Um disse: — Vem ver fulano
Aí vai passando um pavão
O monstro fez uma curva
Para tomar direção.

Então dizia um soldado
— Orgulho é uma ilusão
um pai governa uma filha
mas não manda no coração
pois agora a condessinha
vai fugindo no pavão.

O conde olhou para a corda
E o buraco do telhado
Como tinha sido vencido
Pelo rapaz atilado
Adoeceu só de raiva
Morreu por não ser vingado.

Logo que Evangelista
Foi chegando na Turquia
Com a condessa da Grécia
Fidalga da monarquia
Em casa do seu irmão
Casaram no mesmo dia.

Em casa de João Batista
Deu-se grande ajuntamento
Dando vivas ao noivado
Parabéns ao casamento
À noite teve retreta
Com visita e cumprimento.

Enquanto Evangelista
Gozava imensa alegria
Chegava um telegrama
Da Grécia para Turquia
Chamando a condessa urgente
Pelo motivo que havia.

Dizia o telegrama:
"Creuza vem com o teu marido
receber a tua herança
o conde é falecido
tua mãe deseja ver
o genro desconhecido."

A condessa estava lendo
Com o telegrama na mão
Entregou a Evangielista
Que mostrou ao seu irmão
Dizendo: — Vamos voltar
Por uma justa razão.

De manhã quando os noivos
Acabaram de almoçar
E Creuza em traje de noiva
Pronta para viajar
De palma, véu e capela
Pois só vieram casar.

Diziam os convidados:
— A condessa é tão mocinha
e vestida de noiva
torna-se mais bonitinha
está com um buquê de flor
séria como uma rainha.

Os noivos tomaram assento
No pavão de alumínio
E o monstro se levantou-se
Foi ficando pequenino
Continuou o seu vôo
Ao rumo do seu destino.

Na cidade de Atenas
Estava a população
Esperando pela volta
Do aeroplano pavão
Ou o cavalo do espaço
Que imita um avião.

Na tarde do mesmo dia
Que o pavão foi chegado
Em casa de Edmundo
Ficou o noivo hospedado
Seu amigo de confiança
Que foi bem recompensado.

E também a mãe de Creuza
Já esperava vexada
A filha mais tarde entrou
Muito bem acompanhada
De braço com o seu noivo
Disse: — Mamãe estou casada.

Disse a velha: — Minha filha
Saíste do cativeiro
Fizeste bem em fugir
E casar no estrangeiro
Tomem conta da herança
Meu genro é meu herdeiro.

domingo, 9 de maio de 2010

Meus filhotes



Poema Enjoadinho

Vinícius de Moraes

Filhos... Filhos?
Melhor não tê-los!
Mas se não os temos
Como sabê-lo?
Se não os temos
Que de consulta
Quanto silêncio
Como os queremos!
E então começa
...

A aporrinhação:
Cocô está branco
Cocô está preto
Bebe amoníaco
Comeu botão.
Filhos? Filhos
Melhor não tê-los
Noites de insônia
Cãs prematuras
Prantos convulsos
Meu Deus, salvai-o!
Filhos são o demo
Melhor não tê-los...
Mas se não os temos
Como sabê-los?
Como saber
Que macieza
Nos seus cabelos
Que cheiro morno
Na sua carne
Que gosto doce
Na sua boca!
Chupam gilete
Bebem shampoo
Ateiam fogo
No quarteirão
Porém, que coisa
Que coisa louca
Que coisa linda
Que os filhos são!

Berry



minha frutinha preta

quinta-feira, 6 de maio de 2010

O Chamado


Vou seguir o chamado
E onde é que vai dar, onde é que vai dar?

Não sei...

Arriscar ser derrotado
Por mentiras que vão
Mentiras que vêm punir

Um coração cansado de sofrer
E de amar até o fim

Acho que vou desistir

Céu abriga o recado
Que é pra eu me guardar
Mudanças estão por vir

Esperar ser proclamado
O grande final,
O grande final feliz!

Que tal aquele brinde que faltou?
Será que teria sido assim?

Acho que vou resistir

sábado, 1 de maio de 2010

Presenças e ausências




Oculta consciência de não ser,
Ou de ser num estar que me transcende,
Numa rede de presenças e ausências,
Numa fuga para o ponto de partida:
Um perto que é tão longe, um longe aqui.
Uma ânsia de estar e de temer
A semente que de ser se surpreende,
As pedras que repetem as cadências
Da onda sempre nova e repetida
Que neste espaço curvo vem de ti.


José Saramago
in 'Os poemas possíveis'