segunda-feira, 25 de julho de 2011

O amor


"Estou a amar-te

como o frio corta os lábios.

A arrancar a raiz

ao mais diminuto dos rios.

A inundar-te de facas,

de saliva esperma lume.

Estou a rodear de agulhas

a boca mais vulnerável

A marcar sobre os teus flancos

o itinerário da espuma

Assim é o amor:

mortal e navegável"


(Eugênio de Andrade)

sábado, 23 de julho de 2011

Ausência



A mulher deitada, a mulher que se perdeu,
durante o sonho, e não sabe que o caminho
estava indicado nos seus olhos, procura o vazio
com a mão segura entre lençol e cobertor,
como se nesse intervalo houvesse ainda
uma saída para o desejo. No sono em que
a maré da noite se desfez num impulso
de névoa, os seus lábios murmuraram
o nome que não tem corpo; e em vão
esperaram o beijo que os iria selar,
os dedos que se afundariam no oceano
dos cabelos, a respiração que
lhe daria o ritmo da manhã. Por isso,
a mulher que acorda pede à noite que não
a deixe sozinha, como se o abraço antigo
se pudesse prolongar, ou o sol
não trouxesse o dia para junto dela.

Nuno Júdice

sexta-feira, 15 de julho de 2011

Vontade


"Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio
e nesse silêncio profundo se esconde
minha intensa vontade de gritar"

(Clarice Lispector)

terça-feira, 12 de julho de 2011

A boca da noite



"O que não fiz ficou vivo
pelo avesso. O que não tive
pertence à dor do meu canto.
A estrela que mais amei
acende o meu desencanto.
Vinagre? Sombra de vinho?
De noite, a vida engoliu
(é doce a boca da noite)
as dores do meu caminho.
O meu voo se apazigua
quando a tormenta me abraça.
O que tenho se enriquece
de tudo que não retive.
Diamante? Flor de carvão"


(Thiago de Mello)

domingo, 10 de julho de 2011

Cinema Paradiso



Os meus versos



"Leste os meus versos? Leste? E advinhaste
O encanto supremo que os ditou?
Acaso, quando os leste, imaginaste
Que era o teu esse olhar que os inspirou?

Advinhaste? Eu não posso acreditar
Que advinhasses, vês? E até, sorrindo,
Tu disseste pra ti: "Por um olhar
Somente, embora fosse assim tão lindo,

Ficar amando um homem!...Que loucura!"
- Pois foi o teu olhar, a noite escura,
(eu só a ti o digo, e muito a medo...)

Que inspirou esses versos! Teu olhar
que eu trago dentro d'alma a soluçar!
........................................................
Ai não descubras nunca o meu segredo!"

(Florbela Espanca)